27.7.07

Crónica das Hébridas - 6

Roam-se de inveja: eu já posso dizer a toda a gente que vi o meu patrão de saias, coisa que com certeza muito poucos portugueses terão oportunidade de se poderem gabar (patroas não vale, hem? nada de batotas). O que eu vi foi um senhor barbudo, careca e respeitável, de saia vermelha e meias brancas pelo meio da perna. OK, ok, podem argumentar à vontade que eu estou na Escócia, que aquilo é um kilt, tudo bem, chamem-lhe lá o que quiserem, porque mesmo com nomes esquisitos é tal e qual uma saia traçada por cima do joelho, com pregas e um alfinete a prender a abertura, para o vento não mostrar a coxa peluda.
Fora de brincadeiras, de facto ver uma data de matulões em trajes típicos não tem nada de estranho, nem sequer de risível, estivessem eles a passear em Lisboa e já a coisa era outra, mas assim, dentro do contexto, posso dizer que é até bastante elegante. No casamento da filha do patrão, onde eu fui cair de paraquedas, havia por lá uma data deles, incluindo um puto pequenino ainda de chucha, de tal maneira que os poucos fulanos de calças é que destoavam à brava, como se andassem com um cartaz a apregoar “eu não sou daqui”.
A fatiota não deixa de ser estranha, mas como ainda não me informei sobre o assunto, em vez de vos instruir, só posso especular (especialidade minha):
· dado o facto dos romanos descreverem os povos celtas com calças aos quadrados, de cores vivas, presume-se que o pano se manteve mas o modelo mudou radicalmente;
· dado também que a Escócia passou praticamente o tempo todo à bulha com os diversos vizinhos, invasores, tiranos e afins, onde precisavam de se mexer à vontade, esconder-se em montanhas onde os outros dificilmente se arriscavam e meter-se em altas sarrafuscas quando tinham de chegar a vias de facto;
então por que raio é que mudaram de umas calças práticas para uma saia de pregas que só atrapalha? (experimentem andar de gatas com uma vestida e logo vêem do que estou a falar).
Dados os factos contraditórios, a minha explicação é que, dada a inferioridade numérica e as adversidades do território, os homens tinham de ser muita bravos pra conseguirem dar conta do recado; ora tendo de andar de saias, com o friozinho que aqui faz e uma data de mosquitos a dar ferroadas lá por baixo, acho que qualquer um fica capaz de atacar o próximo à dentada. Isto com certeza foi uma ideia estratégica de um comandante à rasca, com uma data de homens desmotivados, sem vontade nenhuma de ir à luta, e o inimigo prestes a aparecer. “Cambada de meninas! Pois vão combater de saias, qu’é o que lhes vai bem!” E eles ficaram todos tão lixados com a vergonha, com o frio e com os mosquitos, que nesse dia os desgraçados dos adversários devem ter levado a sova da vida deles. ...Mas suponho que quem estudou o fenómeno tenha alguma explicação mais plausível.

Agora agarrem-se bem… vocês sabem o que é que esta malta bebe à refeição, com o bacalhau e as batatas fritas?… Leite. Leram bem. Os gajos bebem leite. Menos mal que, quando falo em bacalhau, é bacalhau fresco, não é do nosso (a propósito, foi preciso vir até aqui para ver como é um bacalhau acabado de sair da água), e cozinha-se como qualquer pescada gorducha, por sinal bem agradável. Claro que sempre que o orçamento e o fígado o permitem, preferem beber vinho (a cerca de 6 € a garrafa), mas num jantarinho simples bebe-se leite e acha-se muito esquisito porque é que as meninas de fora fazem tantas caretas e tanta espantação por coisa tão corriqueira.
Também comem galinha com compota de amoras, mas isso eu só tenho de aplaudir, que sempre gramei estes contrastes, portanto venha de lá o frasco enquanto vocês torcem o nariz.
Os pequenos hábitos são muito diferentes para quem tem outros paladares e outros costumes. Apesar de normalíssimo para muitos dos meus ilustres conterrâneos, para mim é um nojo ver toda a gente, mas mesmo toda, em cada casa que tenho entrado, com um alguidar dentro do lava-louças, normalmente peganhento, asqueroso, cheio de gorduraça entranhada nos riscos do plástico. Enchem o coiso com água, deitam-lhe detergente, e depois mergulham a louça naquela sopa, passam o esfregão à rais-te-parta e põem a escorrer, ainda cheia de espuma e restos de comida. Daí vai para o armário e na refeição seguinte comemos naquilo. Deve ser por isso que eles dispensam o azeite… Pelo menos a louça ainda vê esfregão, agora o alguidar nem isso. Cada vez que vou ajudar, a primeira coisa que eu faço é tirar o coiso seboso do lava-louças e pô-lo no chão, o que causa grande galhofa entre os indígenas e até já me tiraram a fotografia, de prato na mão e alguidar aos pés, para poderem mostrar aos amigos os hábitos esquisitos que as estrangeiras têm.
Igualmente omnipresente é a cafeteira eléctrica, mas dado o gosto que eles têm por chá, essa eu entendo, porque é bestialmente rápida para ferver água. Mas outra bem menos lógica é a falta de toalheiros nas casas de banho, ou mesmo de uns ganchinhos na cozinha para pendurar os panos da louça. Assim, tudo o que é trapo é deixado nas costas das cadeiras ou largado à balda no chão da casa de banho.
E depois, toda a gente tem um fogão muito castiço que funciona com turfa. Em vez de carvão, usam turfa como combustível, o que deve sair bastante económico, porque afinal é só só cavar o quintal e encher o balde. Os fogões que tenho visto são todos castanhos, com quatro portinhas, como os antigos fogões a lenha, e a malta usa-os sobretudo como aquecimento, sempre a funcionar, do que propriamente para cozinhar. Por aqui vive-se na cozinha, a divisão maior e mais aquecida que serve de sala comum, onde se recebe o pessoal, se vê a televisão e se vai assaltando o frigorífico nos entretantos (deve ser por isso que são todos tão anafadotes).
Com a mania das originalidades, as tomadas por aqui tem 3 pinos e um interruptor, ou seja, quanto a trazer aparelhos eléctricos para cá, tratem primeiro de passar na loja e comprar fichas para substituir, pois de contrário, o telemóvel ou mesmo o computador portátil só funcionam enquanto durar a carga da bateria.
Quanto ao teclado dos computas locais, bom, eu estou a escrever com o mapa de caracteres aberto e a usar short cuts porque não há assentos. Como o gaélico leva graves e agudos, há nesta altura uma batalha local, através do jornal da terra, pela adaptação dos teclados. “E porque é que não compram uns quantos teclados como os nossos, lá de Portugal, e arrumam o assunto?” “Ah, por causa do software, então, aquilo não é só ligar e já tá…” Ainda sugeri que comprassem também o software, se é que o teclado não vem já com o respectivo disquinho de instalação, mas parece que o orçamento do escritório não dá para grandes cavalarias. ...E depois, claro que é muito mais divertido escrever artigos para o jornal a acusar os malandros dos ingleses, porque se ‘tá mesmo a ver que isto dos teclados é mais uma forma de discriminação da cultura gaélica.
Hábitos diários à parte, os das instituições também são um tanto diferentes. Ontem tive de abrir uma conta no Royal Bank of Scotland, porque o escritório paga os ordenados por lá – bom, e com a treta do câmbio, tenho pago um dinheirão de cada vez que vou levantar umas quantas libras ao multibanco com o meu cartãozinho português, portanto sempre será melhor ter umas massas no banco local. E então, pasme-se, abriram-me uma conta sem me pedirem uma librazita que fosse como depósito inicial. Mais: mesmo sem ter lá massa, ficaram de me mandar o cartão do multibanco (de uso grátis, sem taxas) para a morada da Marisa (porque eu não tenho um endereço certo, tem sido uma semana com cada uma), e se entretanto quiser movimentar a conta, tenho um número de código escrito num papelinho rabiscado que a menina me deu – “basta dar este número no balcão e pode levantar dinheiro”. Assim mesmo – toma e embrulha. Havia de ser na nossa pátria lusa… Sem massa nem morada, ‘pera lá que já cospes. Segurança, népia, mas há que concordar que é bastante confortável.
Já menos confortável, sobretudo para quem lá trabalha, é o sistema de encomendas dos correios. Os pacotes que ninguém atende na porta ficam à espera na estação durante 6 semanas. Se ninguém aparece para os levantar durante esse tempo, são enviados para o posto de Belfast, encarregado de reenviar as encomendas para os respectivos remetentes. Agora imaginem o estado em que chegam os “black puddings” (grande chouriço de sangue em versão local) que a titia da terra tentou enviar ao sobrinho que foi para Londres… Segundo a descrição do Donald, um empregado dos correios, os pacotes chegam já com o caldo da fermentação a repassar o papel, numa sopa medonha de cheiro pestilento. A avaliar pelas caretas, os black puddings e os grilos vivos (enfim, quando os enfrascaram estavam vivos...), enviados para os donos de animais exóticos papa-grilos, parecem ser o pesadelo do Donald. Sempre que lhe toca a vez de ser ele a separar as encomendas que chegam de Belfast, entra em casa já a despir a roupa empestada e vai directamente pró banho.

Mas é uma terreola simpática com gente porreira, não se deixem levar pelos meus comentários, afinal aterrei aqui vinda de outras paragens e às vezes sinto-me no meio dos selvagens, mas a opinião deles deve ser recíproca. E depois, se não fossem as diferenças, para que é que valia a pena viajar?

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