20.7.07

Crónica das Hébridas - 3

Malta muito hospitaleira, é um facto. Logo na primeira noite em casa da minha colega enfiaram-me uma borracheira das boas, em que eu, muito naturalmente, colaborei apenas por uma questão de solidariedade com os meus anfitriões, claro.
A casa é tal e qual uma réplica das construções dos Sims. Para quem conhece o jogo, pode fazer uma ideia muito exacta do género de construção, do papel das paredes, da alcatifa e mesmo dos objectos. Quando ontem me falavam da vizinha que construiu uma sala de jogos com uma mesa de bilhar, um coiso de flippers, um bar e uma jukebox, pensei imediatamente que a boneca já conseguiu juntar simoleons suficientes para poder comprar mais objectos do jogo. Estão cá todos, inclusivamente os que faltam. Como o bidé, que aqui também ninguém tem nem sabe pra que serve, e depois ficam muito admirados para que raio é que eu de vez em quando levo uma cafeteira para a casa de banho. Admiram-se mas também não se atrevem a perguntar nada, como manda a educação britânica, apesar de ser perfeitamente normal comer directamente em cima da mesa, sem toalha nem guardanapo, e largar displicentemente um bruto arroto no final. Nada de importante; afinal é tudo malta porreira e ninguém é de cerimónia.
O marido da Moira, Ivor, tem um barco que é os seus encantos, herança do pai dele, e passa a vida na garagem a meter mais cola nas tábuas e a pulir o casco. Parentesis:
“Sabes tricotar?”, perguntou-me alguém antes de eu cá vir parar, já que, segundo o fulano, aqui nas Hébridas o pessoal ou anda na pesca ou faz camisolas de lã – ponto de vista limitado de um londrino que nem sabe lá muito bem onde é que isto fica. “Como eu suponho que não vais para lá apanhar peixe, o melhor é ires treinando o tricot…”
Fechando o parentesis: com efeito, na ilha o mar é inevitável. Esbarra-se com ele a cada volta da estrada. As povoações crescem ao longo da costa e toda a gente quer ter direito a um pedaço de vistas marítimas. Ter um barco na garagem, como o do Ivor, é como um lisboeta com uma bicicleta debaixo da cama: dá sempre jeito para um giro de fim de semana, com a aliciante adicional de se poder voltar do passeio com uns quantos carapaus no saco.
E em terra há as ovelhinhas, que também praticamente toda a gente tem. As ventanias são péssimas para as árvores poderem crescer, por isso a paisagem é feita de campos de pasto, cheios de ovelhas em cima, todas a produzir lã para as camisolas.
As aldeias muitas vezes não passam de dúzia e meia de vivendas de construção bastante curiosa, não tanto pelos materiais usados (paredes duplas em blocos de cimento com uma carapaça de reboco rugoso no exterior, cheio de pedrinhas minúsculas sobre uma base colorida), mas pela uniformidade dos feitios, como se houvesse um catálogo oficial da ilha, só com meia dúzia de modelos à escolha. Nada de exibicionismos ou inovações, nada que contraste com a casa do vizinho do lado, nem em cores nem em dimensões. São todas muito discretas, de um cinzento mais rosado ou mais amarelado ou mais esverdeado, mas daí não passa. É sem dúvida uma paisagem muito característica, mas cheira-me muito mais a receio da diferença do que a falta de imaginação.


Hoje atravessei mais um bocado de terra até chegar a uma outra margem, com mais casinhas à beira mar e desertos alagados no interior, onde nem as ovelhas pastam. A Moira levou-me a ver os calhaus. Não há antas nem menires, poucos aqui sabem sequer o que isso seja, mas em compensação há carradas de alinhamentos circulares. Nesta quinta-feira anunciaram a descoberta de mais outro, perto do maior círculo conhecido encontrado até hoje aqui nas ilhas. Provavelmente haverá mais, já que os calhaus têm aparecido em pontos estratégicos, de onde se podem ver uns aos outros, como partes de uma grande rede. É quase impossível ter uma imagem próxima do que seria esta paisagem durante a idade do bronze, mas só a ideia de uma ilha semeada de pedregulhos erguidos já impressiona. E se não os vemos todos agora é porque estão partidos ou enterrados na turfa. Séculos e séculos de sedimentos de plantas rasteiras que vão nascendo em cima das progenitoras já podres, adubadas com caganitas de carneiro das ilhas, e assim sucessivamente, em renovadas camadas de pasto e de bosta. A terra cresceu, literalmente, e engoliu os calhaus, povoações inteiras, restos de passado. Num terreno destes, às vezes basta cavar um buraco no quintal e lá vem brinde.
Aos saltos pelo meio das poias e dos calhaus, e as ovelhas todas a fugir com injúrias barregadas, cheguei ao cimo de uma colina onde em tempos levantaram um destes círculos. Um sítio alto e ventoso, de vistas enormes a toda a volta, onde com certeza as pedras erguidas pareceriam bicos de coroa. Agora é preciso lá estar para os ver. Já só restam as bases dos pilares e os pedaços espalhados no chão. O do meio, aparentemente uma coluna mais grossa, conservou-se um pouco mais, mas mesmo assim terá pouco mais de um metro de altura. As placas chamam-lhe Steinacleit e classificam-no como um monumento funerário. E aqui, desculpem lá, mas classificar um coiso circular, que ninguém sabe exactamente o que é, como um monumento funerário, só porque lá encontraram meia dúzia de ossitos e provavelmente uns caquinhos votivos, parece-me tão leviano como um extraterrestre que aqui chegasse, já depois de nos termos exterminado todos uns aos outros, e concluísse que as nossas igrejas eram monumentos funerários porque havia túmulos lá dentro. Até pode ser que tenham todos muita razão, mas eu ainda não ‘tou nada convencida de que os avôzinhos do bronze tivessem tido uma trabalheira do caneco a acartar com pedrugulhos monstros, a arrumá-los todos de acordo com o alinhamento dos astros (o que implica vários anos de observaçôes), só para depois enterrarem os mortos lá no meio. Ná… Esta do “monumento funerário” é directamente proporcional ao diagnóstico da virose. Se um desgraçado aparece no médico com algum sintoma que não vem no livro, é porque apanhou uma virose (ou então é do stress, que também serve pra tudo).
Mais adiante, sem mais classificações do que uma placa a chamar-lhe “Truisel Stone” (ou Clach an Truiseil), há um enorme calhau no meio de uma povoação, com uma casa mesmo ao lado, onde em tempos deveriam estar os seus irmãozinhos. Do alinhamento original só sobreviveu um gigante, um pedregulho bestialmente matulão, até agora o mais alto de toda a Escócia, pelo menos enquanto não descascarem a turfa a mais uns quantos, como os tais que apareceram na semana passada. Pelo tamanho, alvitro que fosse o pilar central, ou pelo menos um dos centrais, já que o costume local era de construir vários círculos, raramente concêntricos, com os calhaus maiores a formar as linhas interiores. Ressalvo que isto sou eu nas minhas especulações; ainda não fiz os trabalhos de casa, não fui ler o que haverá na internet sobre Clach an Truiseil e a minha única fonte de informação é a Moira, que nunca foi muito dada a arqueologias e agora só me atura por estas encostas acima porque eu dou pulinhos de contente cada vez que vejo um pedregulho. Para ela e para o pessoal daqui, sempre foi uma pedra solitária. Quem está a imaginar círculos sou eu. De qualquer maneira, um só ou último sobrevivente, é um belo calhau, sobretudo para quem gosta de calhaus. Deve ter perto de seis metros de altura por um e tal de largo e é espalmado como uma laje, com o topo a direito (entretanto partido), nada que se pareça com os nossos pirilaus solitários (vulgo menires, pra quem não entendeu). Os pedregulhos daqui têm uma secção rectangular. Tentaram talhá-los lisos e regulares como bocados de parede e até admito (mais especulação minha) que tivesse havido intenção de lhes poderem pôr barrotes em cima; uma fila de blocos lisos está mesmo a pedir um remate, como um tecto ou umas traves horizontais. Acho que preciso mesmo de consultar os livrinhos que a Chrisella me prometeu, para saber se estou a delirar.


Calhaus à parte, outra das notícias da semana passada foi o avistamento de mais 36 tubarões a rondar a costa do que no ano passado pela mesma altura. No frigorífico da pensão havia um íman muito giro, com um tubarão de boca aberta e uma legenda a dizer “mandem mais turistas – os últimos estavam uma delicia”, mas tanto quanto dizem os nativos, é só uma piada, porque os tubarões daqui só comem plancton… se bem que eles também nunca falam nos mosquitos que mordem, portanto não sei lá muito bem se posso confiar nas informações destes gajos… Bom, como me convidaram para ir à pesca num barquinho a remos, fui tirar informações à internet e pois, com efeito parece que esta raça só come plancton, mas também lá diz que têm 12 metros de comprimento e pesam 3 toneladas, portanto, independentemente da dieta dos bichinhos, espero bem que nenhum se lembre de dar uma marrada no barquito, mesmo que depois diga que foi sem querer.

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