18.7.07

Crónica das Hébridas - 2

Serão na pensão, já com um bloco de papel que não vale nem metade do que paguei por ele.
Afinal parece que os mosquitos que eu vi ao pé da água não são dos tais que mordem, e digo isto pela brilhante dedução da dona da pensão, a Norma, que me diz que “se não te morderam, então não eram eles”. Pelos vistos há por aqui várias raças de pintinhas voadoras.
E quanto às ovelhas, nada a fazer. Não é por timidez que não se deixam fotografar, nem por racismo que se afastam das estrangeiras que as tentam atrair com punhados de erva e piropos do género “anda cá minha linda cotonete…”; é porque são mesmo raça assustadiça e nesta época fogem de tudo o que mexe. Nesta época, pois, porque ainda segundo a Norma, a minha melhor fonte indígena até ao momento, no inverno é ao contrário. Como estão habituadas a que apareça o dono com a ração do dia, vêm atrás das pessoas sempre a ver se há mais comida (lambonas). Uma das pensionistas que por aqui passou foi ver os pedregulhos do neolítico na costa oeste e as ovelhas seguiram-na em bando até ao autocarro. A miúda bem fazia “chô! chô!”, mas qual chô… A preocupação dela era que alguém pensasse que estava a roubar as ovelhas… mas felizmente, apesar dos piores receios, as bichas não entraram atrás dela para dentro do autocarro.
Mas se a rapariga tivesse ido passear de carro, poderia não ter melhor sorte. Os donos das ovelhas deixam-nas à solta no campo e quando levam a comida chamam-nas com a buzina. Como elas não têm grande ouvido para a música, quando ouvem as buzinas dos outros automóveis pensam que vem lá mais ração. E assim, os turistas bem que apitam a ver se elas desimpedem a estrada, mas em vez disso, cada vez vêm mais, todas bestialmente impacientes, a pensar que as estão a chamar para o almoço. Ah sim, o inverno por aqui deve ser um prato…
Felizmente, ou pelo menos para os meus idealismos, percebo que os ilhéus não são todos chapa-4, moldados pelos tais moralismos locais, e que tal como seria de esperar, também se enfrascam alegremente aos domingos, feriados e dias santos, com o stock de bebidas com que se abasteceram nos dias úteis. E pelo que me contam dos rigores do inverno, posso supor que isto seja tudo pessoal muito dado ao bicoque. Afinal são esoceses, raio, foram estes gajos que inventaram o wisky, não têm nada a ver com o bando de abjectos pregadores abstémios que andou por aí a espalhar cartazes pela cidade.
E depois, sejam ou não efeitos da graduação, o facto é que este pessoal é bestialmente hospitaleiro.
Depois de conferenciarem todas, as minhas novas colegas concordaram que não há alojamentos baratos aqui na ilha e que portanto o melhor era levarem-me para casa delas, uma de cada vez, “e ai que divertido que vai ser, com o marido e os meninos e o cão e as galinhas” (dizem elas, enquanto eu, com a minha timidez crónica, começo logo à procura de um buraco para me esconder), e entretanto há uma que me quer levar para os copos no sábado e outra que me vai levar à pesca dos caranguejos no domingo, e com um calendário destes, a ver se não tou c’uma bruta ressaca, senão nem pra isco vou prestar.
“Safe place, nice people”, como me dizia alguém por e-mail aqui há dois meses atrás, quando eu ainda hesitava em vir. Se eu os entendesse melhor (e eles a mim…) talvez fosse perfeito.
Até agora sempre achei que é muito mais fácil entender um escocês do que um inglês, porque o escocês pronuncia as letras todas. Mas o raças do sotaque dos ilhéus é bestialmente cerrado, com umas entoações que lembram o sueco, e nem eles parecem entender facilmente um inglês de Londres – e quanto ao londrino, coitado, se já acha que o sotaque escocês é difícil, quando ouve estes gajos não entende um boi.
Só um exemplo: há uma semana atrás, a secretária do MacLean, toda prestável ao telefone, ofereceu-se para me procurar um sítio onde dormir e às tantas perguntou-me se eu sempre ia trazer o “cait”. “O quê? …o meu carro [car]?” – e pensei que depois da conversa com o MacLean, em que ele me tinha aconselhado a trazer o meu rodinhas, porque sem rodinhas nesta ilha ninguém chega a lado nenhum, ele tivesse ficado convencido de que eu ia mesmo arriscar-me a atravessar quatro países e dois paralelos com um Renault 5 de 88. “Não, o cait”, insistia ela lá do outro lado, “o animal… não tens um cait? O Malky (o Malky é o patrão) falou-me num cait.” “Aaaah… claro, pois, eu falei ao Malky no cait, mas entretanto já arrangei uma cait-sitter para me tomar conta da fera…” e assim de repente estava-me a esquecer que até nas Hébridas já ouviram falar no meu gato [cat].
A conversa das minhas colegas é uma coisa surrealista. A meio das frases passam do inglês-ilhéu para o gaélico, exactamente à mesma velocidade, e volta e meia usam palavras de uma e de outra língua intercaladas ao acaso; suponho que deve sair a que se lembram primeiro, completamente nas tintas para a coerência do código. A verdadeira salada das Hébridas…
E a propósito de salada, ainda uma nota sobre o que se come por estas bandas: bom, fundamentalmente é batatas. Toda a gente as cultiva no quintal e a maior parte tem um corpinho que evidencia bem a qualidade da dieta. Mas também comem coisinhas leves como a salada, onde usam ingredientes bastante curiosos, como uns tomatinhos pequeninos, do tamanho de berlindes, muito parecidos com os frutos de um arbusto que eu tive no quintal e que sempre tiveram fama de venenosos (má língua), mais umas ervas escuras e carnudas, a puxar para o vermelho, assim como um espinafre com ferrugem, e serralhas, pois, aquela coisa que se dá aos coelhos, e se não são serralhas são as primas delas, que a pinta é tal e qual. E depois, quando eu perguntei muito interessada, com uma folhinha na ponta do garfo, “ena, isto é muito bom, o que é?”, respondeu-me a autora do prato “ah, também não sei, mas ali o meu quintal está cheio disso…” Suponho que o critério deve ser “se é verde, papa-se”. E foi assim que eu passei a dar toda a razão aos coelhos.

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