2.1.14

Sherlock BBC - no rescaldo do regresso

Primeiro que tudo, um aviso à navegação: quem está à espera do dia 9 para ver o episódio no AXN ponha-se já a milhas daqui p’ra fora para não estragar a surpresa.

Depois de o episódio ter estreado ontem à noite na BBC, foi a histeria total no tumbas, no face e no twitter, como seria de prever. Ok, a espera foi longa e toda a gente estava ansiosa, mas impressionou-me o facto de o pessoal reagir com tanto espalhafato, a dar saltos de contente, e ai que maravilha, e foi o melhor episódio de todos, como vários chegaram a pôr. Pois não foi. Foi giro, e foi bom rever as personagens ao fim de tanto tempo, mas os argumentistas esticaram-se tanto que começo a temer bastante pela saúde da série.

Comentei num grupo do facebook que o episódio me parecera demasiado frenético e que o Sherlock, o Mycroft e o Anderson tiveram cenas um tanto fora da personagem. Estávamos no rescaldo do episódio e houve logo uma série de gente a refilar e a rebater. Como é difícil manter uma discussão no meio de uma data de malta ainda em delírio, argumento agora aqui, ora bem, que é para isso mesmo que eu tenho um blog.

Por ritmo frenético, não me refiro à velocidade das sequências de flashes em que seguimos as deduções do Sherlock; muito pelo contrário, essas sequências sempre foram óptimas e fazem parte do carácter visual da série – eu referia-me aos cortes entre as cenas. Depois da pequena maravilha que foi o episódio de Reichenbach, absolutamente impecável e fluído em termos de realização, a primeira impressão deste retorno é de que se esforçaram tanto para meterem tanta coisa num episódio só, que algumas cenas tiveram de ser abreviadas, aceleradas ou simplesmente cortadas rente. Em vez de procurarem envolver o espectador, puxá-lo para dentro da narrativa, preferiram chocalhá-lo, puxar-lhe o tapete e gozá-lo descaradamente – ok, até aí nada contra, é uma estratégia que também funciona, mas o resultado final ficou com um ligeiro travo a vinho a martelo.

A sequência da mota por vezes parece ter saído de um filme de acção de baixo orçamento, a começar logo pela maneira como o Sherlock a decide “requisitar” – completamente caricato, quase como num desenho animado. Tem piada, ok, mas credibilidade…?

O que nos leva ao segundo ponto – a questão das personagens a fugir à personagem. O Sherlock a andar de mota? Ok, o moço esteve dois anos desaparecido e sabe-se lá o que terá andado a fazer; pode ter-se tornado um homem de acção e aprendido a fazer acrobacias. Descer escadas numa mota não será lá muito fácil, fazer slaloom por entre as colunas de corredores apertadinhos, pior ainda, mas subir uma escadaria com pendura e tudo parece-me coisa para um duplo profissional. Ok, pois, não sabemos o que ele andou a fazer, mas… isto ainda é o Sherlock?

Da mesma maneira, podemos aceitar que os tempos que ele passou na clandestinidade lhe tenham desenvolvido o sentido de humor e o gosto por pregar partidas impróprias para cardíacos (pobre do John…). Mas custa-me a crer que alguém que sempre foi tão reservado e frio comece agora a armar-se em engraçado, sem se importar de fazer patetices em público. No final, quando ele põe aquele chapéu que detestava tanto para ir ao encontro dos jornalistas, a quem nunca deu cúnfia nem quis prestar declarações, tive vontade de dar porrada no argumentista (por muito que eu adore o Gatiss e a sua propensão para o humor negro, isto passou um bocado das marcas). Se agora me disserem que o Sherlock entretanto voltou a fumar erva ou mesmo a meter p’á veia, ainda poderá ser uma explicação aceitável, caso contrário isto não me está a agoirar nada de bom.

O Mycroft foi talvez o maior estampanço de personagem, o que até dói, uma vez que foi o próprio actor a escrever o episódio. Na cena em que ele se revela ao Sherlock, na prisão, percebemos que afinal poderia ter libertado o irmão a qualquer momento. Ou seja, o sacana é um sádico do piorio e estava ali simplesmente a divertir-se. Um bocadinho demais, não? Assim que o guarda vira as costas, o Mycroft apresenta-se, diz-lhe que tem um trabalho para ele e remata com o “acabaram-se as férias; vais voltar para a Baker Street” – e isto já não é só o cinismo habitual, é um grave problema mental.
O Mycroft não tinha portanto dificuldade nenhuma em tirar o Sherlock dali. Afinal, estava a passar-se por um oficial superior. No entanto, esteve de perna traçada a apreciar o enxerto de porrada que o irmão estava a levar.

Quando o guarda pergunta do Sherlock se ele ainda se lembra do que é dormir, pega numa barra de metal e só não lhe racha o crânio porque nesse momento ele murmura qualquer coisa. Porque até em condições daquelas o Sherlock consegue ver pormenores e fazer deduções incríveis - o homem não é decididamente humano. E pois, note-se que o bom do Mycroft também ia deixar o outro rachar-lhe a cabeça ou pelo menos partir-lhe uns ossitos à cacetada.
Entretanto, o guarda acredita à primeira no que um prisioneiro maltratado lhe acabou de dizer e abandona logo o posto, como qualquer militar sérvio. Pois. Porque o argumento da luz da casa de banho avariada era inabalável, calculo…

Pelo estado das costas do Sherlock, o desgraçado foi flagelado com um daqueles chicotes de tiras que têm pregos/lâminas/ganchos nas pontas, especialmente concebidos para cortar e arrancar bocados de pele. Yikes. O tipo de lesões que deixa cicatrizes grossas e empoladas que nunca mais desaparecem. E o Mycroft, que andou este tempo todo a dizer que se preocupa com o irmão mais novo e que o pode tirar dali, está todo refastelado a apreciar a cena muito descontraidamente, com os pés em cima de um banquinho, e só se resolve a tirar dali o mano quando se acaba a diversão. Mais tarde, o próprio Sherlock acusa-o exactamente de ter ficado ali a assistir e a gozar o prato, mas pelos vistos isso não chega a ser motivo para cortarem relações outra vez.
Logo a seguir, o Mycroft comenta displicentemente que aprendeu sérvio em algumas horas.
Ok… Gatiss, meu lindo, a sério, não achas que te estás a esticar? E um bocadinho de credibilidade? Não…?

Mais adiante, temos uma cena óptima entre os dois manos no apartamento do Sherlock, em que eles trocam os galhardetes habituais. Fixe, até parece que voltámos a entrar na linha. E de repente vemos que eles estão a fazer o jogo das operações, com o boneco e as pinças. Também me ri bastante, pronto, teve piada, concordo. Mas não tem nada a ver com o Mycroft. Logo ele, a alinhar numa brincadeira para miúdos? A propósito de quê? Da piadola, claro, mas este Mycroft saiu de um universo alternativo e não tem nada a ver com o gajo que nos apresentaram nas duas séries anteriores.

Quanto ao Anderson, consigo perfeitamente aceitá-lo como um tipo transtornado pela culpa, convencido de que tinha contribuído para levar o Sherlock ao suicídio. Mas a cena em que ele arranca os papéis da parede e se atira para cima deles a rir-se que nem um maluquinho… enfim, vamos pensar que o homem está com um esgotamento nervoso. É talvez um dos exageros menos difíceis de engolir, mas não deixa de ser um exagero. Afinal, eles são britânicos.

A conclusão do Anderson é a que fica do episódio: ninguém percebeu ainda como é que o Sherlock se salvou e continuamos com as dúvidas todas. Pode ser que ainda venham a explicar a coisa, assim como o que realmente se passou durante a célebre conversa no telhado entre o Sherlock e o Moriarty, que é a parte que me interessa mais. Se tiveram todo aquele trabalho a deixar pistas e a pôr o pessoal a especular durante dois anos para depois deixarem tudo em águas de bacalhau, acho que a popularidade dos argumentistas vai cair a pique. No entanto, o Moffat e o Gatiss são meninos para nos deixarem pendurados, do estilo “explicações…? Mas nós já explicámos…” Pois.

Por falar em pontas soltas: logo ao princípio temos aquele anúncio na imprensa, de que afinal o Moriarty era real e de que o Sherlock estava ilibado, mas não dizem como é que chegaram a essa conclusão. Até podemos pensar que houve ali dedinho do Mycroft, para poder trazer o irmão de volta. E afinal, a imprensa são apenas “contos de fadas”, n’é? Espero bem, porque se ninguém voltar a falar nisto eu vou ficar muito, muito desapontada.

Foi o episódio com mais piadas de toda a série e talvez seja por isso que agradou tanto aos fãs – antes de acalmarem um bocadinho e olharem para aquilo mais a frio.

Tiveram a preocupação de incluir uma série de referências ao fandom (“I believe in Sherlock” – Anderson dixit; as teorias malucas; o slash gratuito entre o Sherlock e o Moriarty) e ficámos finalmente a saber porque é que eles tinham estado a gravar mais cenas no Barts. Como o realizador e os argumentistas gostam de enganar o pessoal com a verdade (hide on plain sight…?), disseram que tinham gravado algumas cenas falsas por causa do público que ia assistir às gravações. Ok, é isso mesmo, eram de facto cenas falsas, mas que afinal também entravam no filme. Como falsas. Topam a gracinha?

Na altura, soube-se que a explicação da cena do Barts já tinha sido gravada. Quando os vi a montar aquele arraial outra vez, achei que tinham voltado ao local para filmar mais uns excertos, pormenores que tinham querido incluir na montagem à última da hora. É frequente acontecer. Mas afinal a causa para o arraial foi a reacção dos fãs durante estes dois anos, as teorias todas que apareceram e o facto de a maior parte do pessoal estar mais interessada em saber como é que o Sherlock sobreviveu do que em deslindar o esquema do Moriarty. Há bocadinho passei no facebook e lá estava mais uma a pedir “digam-me só como é que ele ficou vivo, que eu não consegui ver o episódio”. Esquisito. Ok, eu devo ser do contra. De qualquer maneira, foi simpático terem feito aquelas gracinhas todas à nossa custa – parti-me a rir com a cena do manequim no telhado. Mais ainda com os comentários do pessoal que acreditou na sequência de abertura, com a corda de bungee jumping.

Na cena do beijo com o Moriarty, imagino que se tenha ouvido um coro de miúdas a guinchar na vizinhança toda, tal como eu ouço por aqui uma data de gajos aos gritos sempre que joga a selecção.

O reencontro dos dois amigos foi um pratinho porque meteu soco, cabeçada, cadeiras viradas e tentativas de estrangulamento, com o John a saltar aos gasganetes do Sherlock e tudo. Bastante melhor do que o desmaio original na história d’A Casa Vazia, concordo.

E a propósito do original, achei uma delícia a transformação da cena do Sherlock disfarçado de vendedor de livros. Aqui, aparece um vendedor de DVDs e revistas porno, e que afinal é mesmo autêntico (pobre John…). Os títulos que o vendedor mostra são alusões aos originais – Tree Worshipers (adoradores de árvores) em vez de Catullus (que escreveu sobre a adoração às árvores), Holly Horrida em vez de Holly War (guerra santa) e o trocadilho do British Birds (pássaros britânicos/gajas britânicas). Maravilha.

Quanto a este lorde Moran do episódio, aparentemente não tem nada a ver com o Moran original, mas como já tinham feito transformações semelhantes com a Irene e com o Moriarty, isso não me incomoda nada. Só foi pena não o vermos mais em cena, mas calculo que tenha sido por falta de tempo para desenvolver a personagem (completamente muda, como um figurante – bof).

Será portanto de esperar que façam alterações semelhantes ao Charles Augustus Milverton, porque não estou nada a ver porque é que um chantagista ia querer raptar o John e fazê-lo correr risco de vida para obrigar o Sherlock a ir salvá-lo. Ainda não dá para ver o objectivo. Li algures ontem à noite que a malta está a apostar na Mary como a verdadeira vilã da temporada (quando o Sherlock a “lê”, aparece a palavra liar – mentirosa). Eu acreditaria mais na Mary como um peão do chantagista (que aqui pode ter passado a domador de leões ou a canalizador, evidentemente).

Já agora, quando fazem as fogueiras no 5 de Novembro (Guy Fawkes night – googlem se quiserem saber a história) costumam observar o interior da pilha de lenha com lanternas antes de a acender porque os ouriços acham que aquilo é uma bela toca e por vezes vão-se lá instalar. Aqui, pelos vistos, ninguém quis saber dos ouriços. Porque senão lá se estragava o impacto.


Enfim, vamos aguardar pelo próximo episódio, que é já no domingo. Espero bem que a coisa melhore. O argumentista é o Steve Thompson, o tipo que escreveu o Reichenbach, por isso estou cheia de fungas para ver o que vai sair dali.

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