1.5.08

Memórias

Eu tinha oito anos, quase nove. Tal como a maioria dos putos da minha idade, estava praticamente às escuras, sem fazer ideia do que se passava à minha volta. Havia a guerra, claro, mas como já nasci com ela e aparentemente ninguém se opunha, aquilo parecia ser perfeitamente natural. Mas ao mesmo tempo havia muita coisa bichanada, muitos comentários que eu não entendia, metáforas de que me apercebia mas que não sabia interpretar.
Mas veio a revolução e de repente toda a gente começou a falar no assunto às claras. Os sacristas tinham conseguido esconder o segredo o tempo todo. E o segredo era a realidade.
Lembro-me do 25 de Abril, evidentemente. E lembro-me de que nos dias que se seguiram a malta ainda andava um tanto acanhada, receosa de que houvesse uma reviravolta qualquer, um contra-ataque, e que voltasse tudo à mesma. Mas seis dias depois era Primeiro de Maio, as dúvidas já se tinham desvanecido e os acanhamentos foram todos às urtigas. E o pessoal veio todo para a rua em grande.

eu estava aqui

Não havia cravos vermelhos. Estavam esgotados. Mas a progenitora tinha um ramo de cravos brancos na jarra e serviram na mesma, ora pois. Devidamente encravados a branco, o meu pai e eu fomos até à Alameda ver as vistas. E eram de facto espantosas.
É difícil descrever o tamanho daquilo, aquela energia toda, o arrebatamento geral, a cara das pessoas bêbadas de entusiasmo. Uma bebedeira contagiante.
Fomos andando com a turba sem saber exactamente para onde (eu pelo menos). Parece que ia haver uns discursos algures, mas isso era o que menos interessava. O que era preciso era estar ali, era participar na bebedeira. Havia gajos que me davam palmadas nas costas e me chocalhavam o ombro e que me diziam que aquilo tinha sido feito por mim, pelo meu futuro, pelo futuro dos putos todos, e diziam isto com o ar alucinado de quem se sente a flutuar. E nós flutuávamos com eles. Berravam-se palavras de ordem, agitavam-se punhos no ar, cantava-se o hino pela enésima vez. De vez em quando passava um helicóptero por cima de nós e a malta desatava toda a gritar-lhe “abaixo a reacção” com uma senha tal que mais parecia que queriam deitar o helicóptero ao chão; acho que ainda não estavam lá muito convencidos de que “os outros” não tentassem estragar a festa. Não sei quanto tempo ali estivemos. Sei que viemos roucos para casa, com aquele ar esparvoado de quem acabou de passar por uma experiência transcendental, absoluta e esmagadora. A sensação da união total , da comunhão absoluta. Não havia partidos nem divisões nem rancores. Era uma massa única em estado de graça. Irrepetível.

34 anos depois, sem um sacrista qualquer a jeito pra me tirar o retrato; o look mais revolucionário que se conseguiu arranjar - weeee!!!!!

Sem comentários: