20.10.07

El Baile (1998)

Chega-se lá por uma escada vermelha, que desce em caracol por entre o fumo que vem do fundo. Uma descida aos infernos, ou pelo menos a um dos seus átrios, um sítio escuro e enevoado onde as almas queimam as últimas energias antes da rendição.
A música toma conta de tudo, trovejante tentativa frustrada de parecer alegre. Mas para quem entra aqui pela primeira vez o ambiente é bem mais grotesco do que qualquer castelo fantasma de feira popular.
Figuras deambulam de copo em punho, sombrias e difusas pelo meio da névoa, criaturas do limbo com olhos à prova de fumo. Cruzam-se connosco em farejadelas furtivas e longas observações de predador, mas para quem chega tudo não passa de uma amálgama de formas indistintas com cheiro a muita gente. Só passado algum tempo é que a vista se habitua às trevas e ao ardor e começa a conseguir apreciar a fauna local.
À minha frente vão passando devagar alguns ventres traídos pelas camisas demasiado justas que se arreganham em esgares entre os botões. Circulam interessados nas mesas, onde se instalaram grupinhos de amigas, mulheres que já foram fêmeas e que talvez ainda se lembrem vagamente dos incómodos do período. Também elas observam os seus satélites, ainda que tentem mostrar um ar distraído. Avaliam-se mutuamente. Todos aqui querem escolher e ser escolhidos. Percebo então (anjolas completo) que a tal da "sala de baile" para onde me trouxeram é afinal um ponto de engate. Mas é um engate que impressiona quem vem de fora e nunca ouviu falar desta espécie de boites para a terceira idade.
Os meus olhos vão-se conformando a todo o peso da escuridão e do fumo e começam a distinguir mais pormenores; o contorno raiado das bocas sanguíneas, estrelas vermelhas que lentamente se estendem ao longo das rugas, as mamas gelatinosas literalmente penduradas ao pescoço, os dedos bronzeados onde as alianças que agora rebolam pelo forro dos bolsos deixaram o seu fantasma branco. Há folhos e botões dourados nas camisas de alguns homens secos, talvez ciganos. Os outros, mais anafados ou simplesmente mais recatados, não se atrevem a exuberâncias. O mesmo critério (ou pudor) não existe entre as mulheres. O volume não lhes impede a extroversão. Só assim se explica a profusão de decotes, de franjas e de lantejoulas em vestidos que ameaçam explodir a qualquer movimento.
Penso que isto não seria possível na minha terra. Que nenhum português seria capaz de parecer natural depois dos sessentas metido num traje de luzes. No entanto esta gente está na maior. Constrangimento, só mesmo o meu.
Mas por muito estranhos que estes espanholitos me pareçam, não posso deixar de admitir que têm razão. Eles não desistiram. Não ficaram em casa a ver televisão. E nestes folhos todos há alegria de viver, ou alegria de engatar, não importa; é uma alegria qualquer.
No palco, alguns pares arriscam-se a exibições requebradas, ainda que o som da orquestra tome por vezes aspectos arrepiantes. A voz do cantor já acusa uns tantos whiskies e os músicos limitam-se a acompanhá-lo sem convicção. Tocam música espanhola que os meus avós espanhóis também devem ter dançado, um repertório bolorento que já devia ter passado à história (p’raí dos anos vinte…), mas que pelos vistos continua a reunir adeptos. Talvez seja por causa do saudosismo típico da idade dos clientes… ou pelo facto da música ser irrelevante no que toca a engates, desde que seja apropriada a um roça-roça ritmado socialmente aceitável, ainda com a vantagem dos direitos de autor já terem caído todos no domínio público.
O meu guia é um frequentador habitual do lugar, um primo em não sei que grau que a família me apresentou hoje ao almoço. Explica-me ele que isto é um bom lugar para "ligar". Até aí não me está a dar nenhuma novidade, ainda que me pareça que será preciso estar já muito desesperado para "ligar" com alguma matrona destas. No entanto, nem por isso deixam de ser especímenes altamente interessantes. Muito pelo contrário. Nesta altura já tenho a máquina fotográfica a dar pulos de impaciência dentro da bolsa do cinto. Tiro-a cá p’ra fora a pensar se a fumarada não irá ser fatal para a nitidez. Atraem-me especialmente um grupo de três mulheres numa mesa, a soprarem fumo em silêncios simultâneos, e um cigano castiço que se passeia com uma camisa às bolas com folhos à frente, nitidamente a mostrar-se. Só quando o meu primo me agarra o pulso e me obriga a voltar a guardar a câmara com um ar de urgência é que me apercebo dos olhares inquietos (ou furiosos, mais exactamente) das pessoas ao redor. Se tivesse chegado a disparar uma flashada, suponho que teria sido linchado antes mesmo de perceber porquê.
Afinal este pessoal tem mais pudor do que eu imaginei. Exuberância, sim, engate, pois claro, mas em privado. Território perigoso para um caçador de imagens demasiado impulsivo, dos que fotografam primeiro e pensam depois. Ok, já percebi; há alturas certas para tudo, até para guardar a câmara, por muito que ela proteste dentro da bolsa.
E entretanto o meu primo espanhol em não sei que grau apresenta-me a uma loura ainda em razoável estado de conservação que não estava nada interessada em me ser apresentada e me vira as costas ostensivamente enquanto lhe resmunga qualquer coisa em voz baixa. Percebo que é por minha causa que o meu primo, além de chegar atrasado, ainda não se tinha ido sentar na mesa dela. Pelos vistos está toda lixada por ter passado tanto tempo ali à espera e resolve passar-lhe um belo raspanete. Intervenho, insisto para que nos sentemos todos, mas ela deita-me uns olhos de quem vai morder. A minha presença desagrada-lhe, quanto mais não seja pela minha falta de rugas. Ninguém com a minha idade vai a lugares destes, e quando vai é para se rir dos outros. O episódio da máquina fotográfica só veio reforçar o meu rótulo de indesejável.

Percebo que de repente me tornei o centro das atenções. Todos ali à volta me observam com uma desaprovação explícita. Seguem-me os movimentos e cochicham entre eles, um peso desagradável de muitos olhos em cima de mim. Agora sou um espião desmascarado e não me atreveria a tocar na bolsa onde guardei a máquina nem para tirar o cartão de consumo que o porteiro me deu. Afinal, aqui dentro o bicho raro sou eu.
Deixo o meu primo com a sua loura e saio. Primeiro devagar, até chegar à entrada, mas assim que me apanho na escada desato a correr por ali acima a sentir um alívio enorme, porque afinal acabei me safar do inferno lá de baixo. Na rua, o ar frio e contaminado de Madrid bate-me na cara com um cheirinho a churros e a óleo quente que sai de um café ali próximo. Vou andando, de olho nos carros a ver se passa um táxi, cá por dentro ainda com um incómodo esquisito qualquer, como um pressentimento mau, e tento garantir a mim mesmo que não acabei de ter um vislumbre do meu futuro.

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