Eu no escritório com um caixote na mão, encomenda do progenitor chegada da pátria lusa, com três maços de tabaco e uma data de chouriços lá dentro, a saber – dois vermelhinhos normais, um preto, duas farinheiras e um salpicão (“a Marisa vai ficar toda contente, a pensar que é um vibrador”, aproveitou logo a tarada da Moira para meter a bucha), mais dois postais com as novidades e as instruções: “se conseguires arranjar as couves, podes fazer um cozido com isto, pra mostrares aí aos selvagens o que é comida a sério”. E eu arranjei dois repolhos parecidos com couve galega e os selvagens lamberam o prato, concordando todos que depois de um almoço daqueles devíamos ir bater uma bela sorna, ficando assim explicado o hábito da “siesta” para estas cabecinhas, que continuam a achar que Portugal e Espanha têm nomes diferentes mas é tudo a mesma coisa, “assim como nós e os irlandeses, não é?” Menos clara ficou a minha grande proeza em me conseguir manter elegante (por muito que eu proteste que tou gorda que nem uma texuga) porque se os portugueses costumam enfardar comidas destas, deviam ser todos rechonchudos e luzidios; e se se vissem melhor ao espelho, iam concluir que à conta das “comidinhas leves” que fazem aqui na ilha, andam todos a rebentar as costuras, mas enfim… É como o leite – quando fiz caretas por eles beberem leite às refeições, a acompanhar comida salgada, a Marisa argumentava que era essencial para a saúde: “faz bem aos ossos e aos dentes”, dizia ela, mas se reparasse melhor, ia notar que o marido tem um lindo sorriso com dois incisivos a menos (um em cima e outro em baixo, desencontrados), a irmã tem os molares todos pretos e as filhas dividem-se entre o amarelo-desvitalisado e o cinzento translúcido das cáries interiores. Ainda não vi ninguém nesta ilha com um teclado cinematográfico, mas por falta de beberem leitinho, garanto que não é.
Noite numa festa de escola, muito ao estilo das nossas escolas, por fora com ar de estar a cair aos bocados, por dentro mais ou menos pintada e remendada para ir adiando as despesas das obras por mais uns tempos; as festas servem para arranjarem umas massitas extra para a escola. O anúncio dizia Ceilidh & coffee evening (ceilidh lê-se como “kêli” e consta de danças tradicionais com gaitas de foles), mas de ceilidh houve muito pouco e quase toda a gente preferiu beber chá. Mas eu não podia faltar. Vim por causa do coro gaélico de Point (Coisir an Rubha), onde a Moira e a Chrisella cantam, soprano e contralto respectivamente. À falta de melhor pra fazer, comecei por ir com elas aos ensaios e acabei por me interessar, por me entusiasmar com os progressos, por ficar de cabelos em pé com as fífias ainda por limar, a viver a coisa de tal maneira, que nesta noite acho que vim tão apreensiva como o próprio maestro. Mas o coro portou-se bem. O som foi talvez demasiado curto para uma sala tão grande, mas pelo menos estavam afinadinhos. Daqui a uns dias têm um concerto a sério, um concurso de coros gaélicos em Oban, e daqui até lá vai haver ensaios todas as noites, que já começam a fatigar as minhas colegas. Ainda por cima a Chrisella não se conforma que a parte dela seja tão pouco melódica; entrou no coro porque gostava de cantar, mas como tem uma bela voz de contralto, ficou limitada a servir de suporte à harmonia – “é como se os sopranos fossem de férias e os contraltos tivessem de lhes acartar com a bagagem…” – queixava-se ela um dia destes, por muito que o maestro explicasse que o coro é um trabalho de grupo e que todos são fundamentais. Lembrei-me então de uma das minhas noites em casa dela (que acabaram quase todas em copos e altas filosofias), em que estivemos a ouvir discos de vinil dos anos oitenta e a dançar em pijama, e disse-lhe que aquilo não era o triste destino dos contraltos; veja-se o exemplo da Annie Lennox. Acho que ficou mais animada, pelo menos com a ideia de que um contralto pode fazer uma bela carreira a solo quando não tem bagagens para acartar.
Sábado de filmagens. A realizadora é uma menina-miniatura, uma indiana bonita de vinte e poucos anos e menos de metro e meio de altura, que está a fazer um documentário sobre as ilhas. A ideia dela era tentar reconstruir cenas quotidianas dos anos cinquenta. E então, como precisava de actores e ainda por cima pagava para isso, ofereceram-se uns quantos do coro de Point, para arranjarem mais umas massas para pagar a estadia da equipa durante durante estes dias que vão passar em Oban. Reunidas as vestimentas da época e feitos os penteados a condizer, tínhamos três mulheres e dois homens, mais a Moira e eu para ajudar a espalhar a confusão. Metemo-nos à estrada e parámos no meio do campo, ao pé de uma casota minúscula, como as que em tempos foram usadas pelos criadores de ovelhas como “residências de verão”; o rebanho mudava de pastagem e o dono mudava-se com família e bicharada para o meio destes terrenos desertos. Esta ainda é usada e habitada por um senhor simpático, que aceitou logo emprestar a casa para as filmagens da menina indiana. Mas a pobre da rapariga teve montes de azar com o tempo, tanto que já admite voltar na Primavera e repetir tudo outra vez, porque o dia foi de banho. Dia de chuva horizontal, de tão batida a vento, escuro e miserável, dos que não dá vontade nem de pôr o nariz de fora. Nos últimos takes, com os dois homens e uma das mulheres a fingirem que cortavam a turfa (usada como combustível), as condições eram tão más que teve de ser a própria realizadora a fazer as filmagens, porque o cameraman recusou-se a continuar. Só não sei se foi por causa do tempo ou por estar ainda demasiado encavacado para sair da carrinha… Passo a explicar: estando eu, a Moira, a cortadora de turfa e um dos homens dentro do carro, todos a beber chá para aquecer, apareceu o cameraman, olhou em volta e como não viu ninguém, que os vidros do carro estavam embaciados, vá de abrir a braguilha e começar a fazer a sua mija a favor do vento, mesmo virado para nós. E então, em vez de ficar quietinha, a Moira desatou logo a limpar o vidro com a mão para ver melhor o panorama. Assim que percebeu que afinal tinha assistência, mas já demasiado lançado para poder interromper, o moço virou-se logo de costas para nós, ou seja, ficou literalmente a mijar contra o vento. Provavelmente tinha-se esquecido de que naquele dia o deserto estava particularmente habitado.
Aqui há meses, estando a Marisa a cavar batatas no seu quintal – e o quintal é qualquer coisa como um quilómetro até à falésia, com outro tanto ou mais de largo – fez cloinc numa coisa de metal e vai-se a ver sai-lhe um arreio de cavalo, um freio ferrugento, em que ela agarrou e ficou a pensar “a qual dos meus antepassados terá pertencido esta coisa?”. Com efeito, se estava no terreno dela, pode-se dizer que de certeza era coisa de um dos avós MacKenzie (ou do cavalo do MacKenzie, mais exactamente) que por ali andaram a cultivar as suas batatinhas naquele mesmo chão. Esta ligação telúrica, esta identificação entre terra e gente, dá a este pessoal a certeza do “eu pertenço aqui”, um absoluto conforto moral, meio caminho para aceitarem os limites acanhaditos desta ilha sem qualquer problema. As famílias que até agora conheci estão cá pelo menos desde o século XVII, a cultivar os mesmos terrenos que os avós cultivaram, praticamente com as mesmas famílias como vizinhas, o que automaticamente prolonga o mesmo círculo de amigos através das sucessivas gerações. O vizinho do lado é o neto do vizinho do avô, tudo é seguro, partilhado e conhecido desde o tempo dos MacAfonsinhos.
Como consequência, quem vem de fora com propósitos de se instalar fica logo debaixo d’olho. Ninguém lhes conhece a família, ninguém os viu crescer, portanto, ou provam logo à partida que são boa gente, fazem amizades e procuram integrar-se, ou então ficam irremediavelmente condenados ao ostracismo e vão-se ver à rasca para conseguirem ter uma vida normal. Os ilhéus são boa gente, não me interpretem mal, mas uma comunidade pequena torna-se facilmente desconfiada em relação a estranhos, e se eu tenho conseguido entrar em todo o lado e ser bem recebida é porque, basicamente, eles são naturalmente hospitaleiros e eu tenho cara de menina séria (um tanto excêntrica, é um facto, mas como sou estrangeira tenho direito a desconto), mas se fosse um matulão mal encarado ou tivesse ar de quem andava a atacar no Intendente, estava lixada logo à partida.
De certa maneira, têm tido muitas razões para ser desconfiados. Ainda que nunca tenha havido nenhum problema, as Hébridas têm sido usadas como refúgio para os programas de protecção a testemunhas e outro pessoal que precisa de desaparecer; mudam-lhes o nome, inventam-lhes uma história e mandam-nos para cá para recomeçarem a vida. Erro crasso, porque os nativos já os topam à légua e por muito boas pessoas que sejam, toda a gente foge deles. Normalmente as casas entram em obras antes destas famílias se mudarem, para instalar portas blindadas, vidros especiais e reforçar paredes (que as interiores são normalmente uma bela bodega, feitas com uma matéria plástica que se parte facilmente a pontapé, mesmo sem metade do caparro do Schwarznegger). Ora como os pedreiros são recrutados na ilha, o tal programa de protecção vai logo por água abaixo (...bom, se fossem pedreiros de fora também iam levantar suspeitas). Sabendo-se que o próximo habitante tem alguém atrás dele com ganas de lhe dar cabo do canastro, claro que ninguém quer estar por perto quando isso acontecer. Pode não ser justo para quem já tem problemas de sobra, mas é uma reacção natural.
Ainda por cima, nestes últimos dias, Stornoway tem estado em destaque pelos piores motivos – prenderam um bando de tarados que molestou três miudinhas daqui, o que tem deixado toda a gente agarrada aos noticiários. O que incomoda mais os indígenas (além do crime, claro) é estarem só a divulgar que os pedófilos são habitantes da ilha, sem nunca referirem que nenhum deles é natural daqui. É tudo pessoal que veio de fora e que se tinha instalado há pouco tempo a norte de Lewis.
Depois disto, começa-se a falar em fazer petições para a câmara de Stornoway passar a proibir a instalação de gente com passados suspeitos – e a suspeita pode ser apenas o facto de ser alguém que tenha mudado meia dúzia de vezes de morada durante os últimos anos, como quem anda a fugir de alguma coisa. As vizinhanças estão já a escolher representantes da comunidade e a planear recolhas de assinaturas. Aparentemente não tarda muito para Stornoway estar novamente nos noticiários, desta vez com manifestações anti-estranhos à porta da Câmara Municipal. Brrrr...
Portanto, se alguém por aí está com ideias de vir pra cá, que trate de arranjar um curriculum perfeitinho, com muitas recomendações em anexo, passe um pente no cabelo, vista-se decentemente e vá à missa logo desde o primeiro domingo, senão arrisca-se a ser deportado para a mainland no primeiro ferry boat.
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